terça-feira, 3 de julho de 2012

ENDIVIDEM-SE, É POR UMA BOA CAUSA. Haja pudor

Curiosamente, no mesmo dia que se noticia o aumento brutal de insolvências entre as famílias e as empresas, ficamos a saber que a Faculdade de Arquitectura da Univ. de Lisboa convida, por carta, os seus alunos endividar-se, junto da CGD numa sugestão que ferirá a ética, para que cumpram as suas obrigações de pagamento das propinas. Algumas notas deixando de lado a "parceria" entre a Faculdade de Arquitectura e a CGD.
Há poucas semanas foi divulgado um estudo realizado pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa contribui para desmontar uma equívoco que creio instalado na sociedade portuguesa. Comparativamente a muitos outros países da Europa Portugal tem um dos mais altos custos para as famílias para um filho a estudar no ensino superior, ou seja, as famílias portuguesas fazem um esforço bem maior, em termos de orçamento familiar, para que os seus filhos acedam a formação superior. Se considerarmos a frequência de ensino superior particular o esforço é ainda maior.
Tem vindo a ser regularmente noticiada a desistência da frequência dos cursos por muitos alunos que, por si, ou os respectivos agregados familiares não suportam os encargos com o estudo. Sabe-se também dos constrangimentos na atribuição de bolsas de estudo.
As dificuldades pelas quais passam muitos estudantes do ensino superior e respectivas famílias, quer no sistema público, quer no sistema privado, são, do meu ponto de vista, considerados frequentemente de forma ligeira ou mesmo desvalorizadas. Tal entendimento parece assentar na ideia de que a formação de nível superior é um luxo, um bem supérfluo pelo que ... quem não tem dinheiro não tem vícios.
Desde o início tenho afirmado que o processo de reforma no ensino superior mais conhecido pela "Reforma de Bolonha" radicou mais em questões económicas que de natureza científica, curricular ou de mobilidade envolvendo estudantes e professores. O encurtamento do chamado grau de licenciatura para três anos e a criação do 2º ciclo, o grau de mestrado, possibilitou que na grande maioria dos cursos passassem a ser as propinas dos alunos a financiar significativamente o 2º ciclo que em muitas instituições têm custos elevados, entrando num cenário a que alguns chamam o funcionamento do mercado.
Seria ingenuidade excessiva não perceber que as leis do mercado, sempre o mercado, teriam de chegar também ao ensino superior público, aliás o estudo hoje divulgado mostra o abaixamento sucessivo do investimento do estado em cada aluno. No entanto, também entendo que compete a estudantes e famílias uma parte importante no investimento na formação e qualificação profissional.
Acontece que conhecendo o tecido social, económico e cultural português, longe obviamente dos modelos americanos que alguns defendem, temo que esta entrega às leis do mercado e às capacidades das famílias, alimentem algo que é, ainda, uma característica do sistema educativo português e que os relatórios internacionais reconhecem, o baixo impacto da educação na mobilidade social. Dito de outra maneira, os indivíduos com origem em grupos sociais mais favorecidos são os que tendencialmente obtêm melhores níveis de qualificação e repete-se o ciclo. Neste quadro, a redução significativa das bolsas e apoios, as dificuldades enormes que muitas famílias atravessam e o desemprego mais elevado entre os jovens, que poderia constituir uma pressão para continuar os estudos, a que acrescem as elevadas propinas, designadamente no 2º ciclo, tornam ainda mais difícil a realização de percursos escolares que promovam mobilidade social e que se traduz, por exemplo, no aumento das desistências.
Quando se espera e entende que a minimização das assimetrias possa, também, depender da educação e qualificação, o seu preço e as dificuldades actuais, longe de as combater, alimenta-as.
Neste quadro, talvez faça sentido o convite ao endividamento das famílias realizado pela Faculdade de Arquitectura.

1 comentário:

Epicuro disse...

Só há uma lei de mercado: obedecer a quem tem dinheiro. O mercado não tem qualquer fundamento económico. Por exemplo pelas regras da economia ninguém pode gastar excessivamente, nem em carência. Pelas regras do mercado um rico pode gastar o que lhe apetecer sem respeitar uma única regra da economia. Isto é, a narrativa dos merceeiros não tem qualquer fundamento económico. Mas quem contribui massivamente para impor o mercado é a universidade. É a universidade que inventa a mercadoria, que diz que as pessoas existem para ser escravos dos merceeiros (trabalhadores) e ensina as habilidades que são úteis aos merceeiros. A universidade forma trabalhadores (animais amestrados ao dinheiro). Por isso meu caro, é apenas mais um tiro no pé dos merceeiros.